The Bear e a complexidade e magnitude das relações (contém alguns spoilers)
- Anandha Correia
- 11 de jan. de 2023
- 4 min de leitura

Quem é fisgado aleatoriamente a dar o play na série The Bear, imagina a princípio que se trata de uma série que gira em torno da gastronomia. Eu mesma, entusiasta da cozinha, mesmo após críticas positivas, mas vagas, vindas de colegas de rede social, tive essa impressão e lá fui eu dar o play. Comecei o primeiro episódio aproximadamente 20hs e claro, como não poderia ser diferente, terminei em torno das 00h15 ininterruptamente.
O problema é que quando fui me deitar, após a maratona, não houve a menor condição de pegar no sono: eram muitas questões a serem refletidas depois da machadada do enredo e da surra de atuação de todo o elenco, que inclusive deu merecidamente ao ator Jeremy Allen White, ontem mesmo, o Golden Globe.
Não se trata de uma série que tem raiz na gastronomia, mas que usa o cenário caótico das relações egóicas da cozinha como pano de fundo para despertar questões humanas de extrema complexidade, mas que fazem parte do nosso dia a dia, assim como fazer uma refeição.
“O quanto estamos dispostos à mudança e a novos processos? Como seniors, qual nosso nível de apreensão com a chegada dos mais novos e uma hierarquização reversa, onde o mais jovem assume a liderança? O quanto estamos maduros para assumir falhas e seguir em frente? E o quanto estamos dispostos a perdoar e baixar a guarda em todas essas questões?”
Todas essas questões são abordadas no cenário de The Bear, além de muitas outras que também exploram as relações humanas em toda sua complexidade e magnitude, como luto, vício, suicídio, relações abusivas, enfrentamento, entre tantas outras camadas que esse presente de série carrega.
Processos e mais processos
O quanto estamos dispostos à mudança e a novos processos?
O caos instaurado no início da série, que vai permeando de maneira instável até o final, nada mais é, do que resultado de um lugar inóspito, sem processos e de maneira geral abandonado pelos processos, com um time resistente a qualquer implementação ou novidade que não seja aqueles que já estão acostumados.
Dois personagens que demonstram essa resistência com veemência são Tina e claro, o primo, Richie, que sempre utilizam de sua experiência para contrariar qualquer mudança. Enquanto Tina não se rende à organização quase acadêmica de Sydney, Richie se recusar a aceitar que outros tempos chegaram e que é preciso reavaliar metodologias incrustadas no passado.
Aquém desses emblemáticos personagens, um momento ilustra bem a questão dos processos, que é quando Gary questiona o porquê de estar usando uma escova de dentes para limpar sua estação, e Carmen responde:
“O importante é consistência e ser consistente. Não podemos funcionar a alto nível sem consistência.”
Como lidamos com isso diariamente no nosso ambiente de trabalho? Isso me pegou diretamente, porque vivo a me questionar sobre processos e o quão chatos eles são, mas que no final das contas, são de suma importância para todo e qualquer ambiente.
Sênior X Junior
A tensão que se estabelece com a liderança dos mais jovens
O maior emblema da série em relação a essa questão é o conflito vivenciado por Tina com a chegada de Sydney. A cozinheira resiste até quase o final da série, sabota e hostiliza a jovem, usando o argumento de que quando chegou naquela cozinha ela não havia nem nascido, mas no final, acaba se rendendo à liderança da recém formada, não só pelo seu talento, como também pela empatia e leveza na condução dos processos em um, até então, ambiente completamente hostil.
Uma das grandes lições da série: o quanto temos que nos despir de ego e aceitar que os mais jovens podem ocupar espaços de liderança tão bem quanto os mais experientes.
Sou humano, logo falho
O quanto estamos maduros para assumir falhas e seguir em frente? E o quanto estamos dispostos a perdoar e baixar a guarda em todas essas questões?
Gary - que está tão obcecado na busca do donut perfeito - acaba por utilizar um equipamento de maneira errada e deixa todo restaurante sem energia. Cabisbaixo nos fundos do lugar diz a Carmy que estragou tudo e que não vai mais errar. Carmy responde, “Vai sim, mas não porque você é assim. É porque merdas acontecem.” e conta como ele, o melhor chef do mundo, quase incendiou o restaurante em que trabalhava em uma premiação, tranquilizando-o. Episódio que vem a se repetir na cozinha do Original Beef, mostrando que erros podem sim, se repetir.
Todos erram e isso todo mundo diz. Mas o quanto nos cobramos por isso e acabamos por adoecer por conta de nossos erros? Nos cobramos mais do que deveríamos? Talvez, na comparação com Gary, se cobrem mais aqueles que têm poucas oportunidades e na tentativa de entregarem o melhor, acabam se punindo mais em relação aos erros.
“Você tem um talento imenso, mas é uma má pessoa”
E embora ainda quisesse escrever uma tese sobre The Bear, encerro com essa frase que me deixou extremamente sensível. O quanto o ser artístico pode ser ególatra e acabar ferindo outras pessoas não intencionalmente?
O quanto devemos nos monitorar para que nossa habilidade e talento não corroam nossa alma e o quanto devemos praticar a generosidade, principalmente em ambientes profissionais em que herdamos egolatria, hierarquização, centralização e hiperlativismos, ensinando e estimulando bons profissionais, ao invés de criarmos um pódio imaginário de apenas um competidor?
Maratonar essa série nesse momento da minha vida foi um verdadeiro presente. E eu espero realmente durante todo esse ano que se inicia, lembrar de todas essas questões para criar vínculos mais humanos, leves e por que não, familiares.
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